segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Ingrid Bergman, encanto à meia-luz

"O aspecto saudável e natural e a personalidade da sueca Ingrid Bergman (1915-82) tornaram-na uma estrela popular em Hollywood nos anos 40 em filmes como Por Quem os Sinos Dobram (1943) e Meia Luz (1944), que lhe valeu o Óscar de Melhor Atriz. Outros papéis nos anos 40 incluem Paula Alquist em A Casa Encantada (1945) de Hitchcock. Bergman, que fez de freira em Os Sinos de Santa Maria (1945) e Joana d’Arc (1948), abalou Hollywood em 1949 quando deixou a família pelo realizador italiano Roberto Rossellini. Apesar de isso ter sido anos antes de fazer outro filme americano, com Anastasia (1956) ganhou outro Óscar – o que pode ter assinalado o “perdão” de Hollywood" (Bergan 2008, 423).



Ingrid Bergman, beleza sueca, serenidade mundial. Não há mulher no cinema que transmita maior serenidade que Ingrid. Não é uma beleza perfeita e completamente convencional. O rosto é demasiado largo e o nariz grande. Mas a serenidade e a luz do rosto estão sempre lá para compensar e, até superar, a fragilidade da beleza. Não há rosto, em preto e branco, mais luminoso que o de Ingrid. Em “Casablanca”, mais especificamente na cena em que se despede de Bogart antes de partir de Marrocos com o seu marido, o seu rosto é luz, não meia-luz.




O sotaque, o olhar claro e sonhador dão-lhe um ar exótico.




Cansada de papéis de rapariga boa, a sueca conseguiu o papel sexy em “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”. Esteve muito bem! Nunca pensei que Ingrid pudesse ser sexy, mas ela provou o contrário. Apesar de tudo, os seus papéis de mulher virginal são os meus favoritos, como é o caso em "Notorious" e "Gaslight". Nestes filmes, assim como em "Dr. Jekyll and Mr. Hyde", Ingrid interpreta mulheres desamparadas e sedentas de amor. O estilo vitoriano em "Gaslight", que já havia adoptado em “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, fica-lhe lindamente. Reforça o seu papel de vítima. O espartilho, o cabelo muito arranjado é opressivo, sendo que a opressão é sentida por ela ao ser alvo da crueldade de Charles Boyer, em "Gaslight", e de Spencer Tracy em “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”.




O seu sofrimento causado por um marido é também refletido em "Notorious", sendo que o maravilhoso Claude Rains (Louis Renault em “Casablanca”) é o seu esposo neste filme de suspense.


















A seguir a Grace Kelly, Ingrid é, provavelmente, a maior musa loira de Hitchcock. Fez três filmes com o mestre do suspense, embora "Splellbound" seja aborrecido.


“Casablanca” é o seu filme mais conhecido. E o papel de Ilsa na obra da Warner Brothers é o seu papel mais famoso.






Ingrid é uma das maiores atrizes de todos os tempos. Eu não sei  se ela seria capaz de interpretar mulheres fortes e destemidas. Mas quem sabe se a sueca não seria capaz. Afinal, Ingrid foi uma mulher forte, destemida. Renunciou a uma carreira em Hollywood para ceder ao seu amor por Roberto Rossellini. Foi mal visto, mas o perdão aconteceu quando Ingrid recebeu o óscar pelo seu papel em Anastasia. Quem é que não perdoa a Ingrid? É difícil não perdoar tal beleza cheia de magia exótica e etérea.


Ingrid é a atriz que disse a frase mais famosa do cinema, segundo a AFI: “Play it, Sam”. Talvez se fosse referida por outra estrela, a fama da frase não fosse tão grande. As coisas que Ingrid diz têm magia. Ingrid é misteriosa como Garbo, mas não é fria. É de aspecto frágil, vulnerável. É dona de um rosto que a tela quer beijar. É atriz, estrela, mistério e beleza. É encantamento que seduz mesmo à meia-luz.




Citação retirada do livro "Cinema" de Ronald Bergn, de 2008 (o original é de 2006) e editado em Portugal pela Civilização

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Algumas duplas de que eu gosto

As duplas românticas de cinema! Tão importantes, tão irresistíveis! Ora listo as minhas favoritas sem ordem específica de preferência.


Fred Astaire e Ginger Rogers





As duplas nos musicais resultam-me fascinantes, porque, para mim, a química da dança é a mais irresistível. Se dois bailarinos dançam bem e com empatia (nem que esta seja uma farça), estamos perante uma dupla maravilhosa. Já li que Fred e Ginger não eram os melhores amigos mas também sei que Fred ofereceu uma prenda a Ginger (um alfinete em forma de pena, julgo eu) que remetia para o vestido que a loira usou no número "Cheek to Cheek" em "Top Hat". Este é uma uma delícia de filme. Fred dava classe a Ginger, como se diz (realmente a jovem era pouco elegante a caminhar e a dançar), e esta dava sex appeal a Fred (não concordo com esta ideia, porque, para mim, Ginger não é sexy). Charme, classe, alegria, evasão são os ingredientes que esta dupla transmite.




Fred Astaire e Judy Garland





Apenas fizeram um filme juntos, "Easter Parade". A dançarina que mais associamos a Fred Astaire é Ginger Rogers. Pode não ser a melhor a dançar, mas como fez 10 filmes com o mestre da dança, é normal que essa associação se faça. Ora, eu sinto uma maior química entre Fred e Judy Garland do que entre o dançarino e a loira. Fred Astaire e Judy Garland não são bonitos em termos clássicos, são baixinhos e simpáticos. Estão tão bem juntos. Transmitem alegria como a dupla Fred e Ginger não consegue. Obviamente que Judy Garland é muito melhor a cantar que a dançar. Os números entre Fred e Ginger são bem mais belos que as danças entre Fred e Judy. Contudo, a alegria, a química entre os dois baixinhos divertidos é mais notória e irresistível.



Humphrey Bogart e Lauren Bacall





Não sou fã dos filmes que vi entre eles os dois e, sinceramente, não vejo uma química gigante e escaldante entre o durão e a "the look". Acontece que como sei que os dois eram muito apaixonados, boas pessoas e bons atores, a dupla realmente é-me apreciável. Em "To have and have not", a química é mais notória que nos outros filmes que vi. Foi nesse filme que se conheceram e se apaixonaram. 


Errol Flynn e Olivia de Havilland





O romantismo de forma infantil, semelhante aos contos de fadas. E há mais romantismo que isto? É tão puro, tão charmoso. Errol o aventureiro e Olivia a doce e impetuosa donzela. Errol é tão alegre e Olivia tão mimosa que parece que vieram do mundo da fantasia (e o cinema é, muitas vezes, fantasia) para nos fazer entrar nesse mesmo mundo.


Grace Kelly e James Stewart





Uma dupla pouco falada. É mais abordada aquela que se fez conhecer no requintado filme "To catch a thief", com Grace Kelly e Cary Grant. Eu percebo que Grace e Cary façam uma boa dupla porque os dois são possessores de uma qualidade bastante acentuada em ambos: o charme. Acontece que "To catch a thief" é, a meu ver, um pouco aborrecido. Não sou igualmente fã de "Rear Window", onde Grace Kelly contracenou com James Stewart, mas é inegável que é um filme superior ao outro, além de me divertir bastante mais. A simplicidade de James Stewart contrasta com a elegância de Grace Kelly, mas não se trata de um contraste desconfortável. É estranhamente apreciável. Os dois têm tanta química! As suas discussões, os seus beijos, tudo é tão real e romântico. Uma dupla que deveria ser mais valorizada, devendo ser apreciada como o filme que os viu juntos, que é um dos clássicos mais amados do cinema.



Gregory Peck e Audrey Hepburn





Que atores tão simpáticos! Num filme tão simpático, "Roman Holliday". Gregory Peck é dotado das qualidades de James Stewart: simples, divertido, humilde, charmoso (estou a falar baseando-me no filme que fez com Audrey, mas julgo que o homem devia ser simpático também na vida real). Audrey Hepburn é, igualmente, boa onda. É uma versão feminina de Gregory. Os dois a passear por Roma materializaram a felicidade!


Spencer Tracy e Katharine Hepburn





Amantes na vida real e na tela. E estamos perante dois bons atores. Logo, a dupla é forte e tem química. Spencer tracy não é um galã e Hepburn não é sexy, mas são um casal real, envolvente.



Katharine Hepburn e Cary Grant





Esta dupla é maravilhosa. A minha favorita. Cary e Katharine são atores com um jeito para a comédia notório. São divertidos, simpáticos mas diferentes de James Stewart, Audrey Hepburn ou Gregory Peck. Cary tem um charme snob e Katharine é dura. Essa mistura dá-lhes graça. Em "The Philadelphia Story", a química é perfeita. Os dois são bons comediantes, mas com classe. Em "Bringing up Baby", os dois estão ainda mais maravilhosos. Cary parece brincar com a classe dele ao ver-se perante situações muito embaraçosas. Katharine é versátil e consegue fazer de mulher desvairada. Uma dupla maravilhosa.



Fred Astaire e Cyd Charisse





Ann Miller e Cyd Charisse são as melhores bailarinas do cinema clássico e, ao pé de Fred Astaire, fazem uma dupla cheia de charme e beleza. Ann Miller apenas fez um filme com Fred e nem sequer são o par oficial do filme (estou a referir-me a "Easter Parade"). Já Cyd fez, se não me engano, dois musicais com o rei da dança. "The Band Wagon" é um musical maravilhoso e Cyd e Fred fazem um par charmoso não só por dançarem muito bem os dois mas também porque são pessoas simpáticas.



Cary Grant e Ingrid Bergman





Cary não é muito simpático nem afetuoso para com Ingrid numa das obras clássicas do mestre do suspense. Estou a falar do filme "Notorious". Ele é frio para com ela em quase todo o filme, compensando a sua atitude no final, quando a salva, levando-a para fora da mansão. Embora não seja uma dupla muito romântica, os dois são bons atores e têm tanto carisma que é difícil não gostar da dupla.



Rita Hayworth e Fred Astaire






Sempre que o Fred Astaire entra num musical, eu aprecio a dupla. E com Rita Hayworth não podia ser diferente, se bem que gosto mais de ver Fred com Cyd, Judy e Ginger. Rita dança bem, é elegante como Fred e é a sua parceira mais bonita. Todavia, não tem a alegria das outras parceiras. Fred adorou trabalhar com Rita (fizeram dois musicais: "You'll never get rich" e "You were never lovelier"), considerando que a deusa ruiva havia sido a sua parceira favorita (não sei se disse isto já depois de ter dançado também com Judy e Cyd).




Hedy Lamarr e Charles Boyer





Vi recentemente "Algiers", um bom filme, por estar interessado em conhecer a dupla Charles Boyer e Hedy Lamarr. Fiquei admirado como o livro "Leading Couples: The most unforgettable screen romances of the studio era" (não possuo o livro) inclui esta dupla, pois, depois de investigar alguma coisa de cinema, eu nunca tinha ouvido falar. É de admirar como uma dupla formada por dois atores não muito conhecidos e com fama de serem medíocres na sua profissão, além de apenas terem realizado um filme juntos, surja no livro. Eu, perante esta situação, pensei que se deveria tratar de um dupla com muita química. Ora, não achei. "Algiers" é um bom filme, Boyer, que, para mim, não é assim tão mau ator como dizem, está bem e Hedy Lamarr é bonita, mas eu sinceramente não a acho boa atriz. Com uma atriz de pouco talento, a força desta união perde encanto. Apesar disso, é uma dupla que eu gosto. O charme dele e a beleza exótica dela, reunidos no ambiente também exótico do filme, fazem com que a dupla seja sedutora. Não é das melhores duplas, mas tem o seu charme.


Greta Garbo e Mervyn Douglas





Mervyn Douglas não é um ator muito conhecido e eu apenas o conheço do filme "Ninotchka". A dupla Garbo/Douglas é pouco abordada, mas, para mim, é maravilhosa. Greta Garbo é reservada e de aparência fria como Kim Novak. Poder-se-ia dizer que ela apenas fica bem sozinha (para brincar com a famosa frase que, para sempre, lhe ficou associada), mas a diva tem realmente química com Mervyn. O papel dela no filme referido também é romântico, facilmente concretizador de um dupla deslumbrante do cinema. Mas não basta ter isso em conta. Garbo está realmente fantástica com Mervyn. Mesmo quando faz de mulher fria, a união entre os atores é fantástica. Mervyn é divertido e charmoso, contribuindo para o poder da dupla, ao tentar mudar o aspeto distante de Garbo.


Robert Mitchum e Jane Russell


Eu nunca vi nenhum dos filmes em que esta dupla entrou ("His kind of woman" e "Macao"), mas a curiosidade é bastante pelas cenas que consegui assistir onde o durão Mitchum contracena com a igualmente rígida Jane Russell, uma atriz que eu gosto muito. A química é perceptível, mesmo vendo-se apenas alguns clips dos filmes. Eles são carnais, fortes, intensos, agressivos. Fazem uma dupla nada etérea, mas irresistivelmente física.



Myrna Loy e William Powell





Vi "The Great Ziegfeld", onde a dupla William Powell/Myrna Loy assume-se como protagonista, embora Myrna quase não entre em cena e demore bastante tempo para aparecer (claro que a narrativa, baseando-se na vida de Florenz Ziegfeld, assim o exigia, mas fiquei um pouco decepcionado por Myrna não entrar tantas vezes e tão tarde no filme) . A química não é forte, mas creio que a série de filmes "The Thin Man" é a mais adequada para se ver a magia entre Myrna e Powell. Acho que vou gostar. Escolhi esta dupla porque Myrna é das minhas atrizes favoritas e ela fica bem com quase todos os atores ao fazer de esposa perfeita, o seu papel mais lhe associado. Por excertos que vi da série "The Thin Man", a química é notável.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Os gatos não têm Vertigens, uma obra-prima

Ultimamente tenho visto bastante cinema português: "Os Maias", "A Gaiola Dourada", "O Pátio das Cantigas" (original), "Aniki Bóbó" e "Os Gatos não têm Vertigens". É deste último que vou falar. Não dá para fazer uma crítica feroz porque esta obra-prima (e provavelmente será a obra maior de António-Pedro Vasconcelos, não porque eu considere que a partir de agora fará coisas más mas porque é difícil atingir o sublime de novo) é, de facto, maravilhosa. E isto não deveria ser uma opinião, mas, como eu disse, um facto.



Cinema é, acima de tudo, contar uma história através de imagens com o menor diálogo possível. Hitchcock fazia isto melhor que ninguém. Bom, "Os Gatos não têm Vertigens" não explora exatamente esta capacidade cinematográfica, mas vale por outras qualidades também muito importantes, tendo o ponto forte naquela que eu mais valorizo: o guião.




Este filme tem a capacidade de ter um argumento criativo, sem fugir ao registo comercial, que, para mim, é sempre uma mais valia. Na minha humilde opinião, o "comercial" não tem de significar vazio e fútil. Obras hoje reverenciadas como "Singing in the Rain" ou "Psycho" não são comerciais? São muito comerciais e, no entanto, dotadas de grande valor cinematográfico. Como português, considero urgente que um filme seja do estilo mainstream para levar pessoas até ao seu produto nacional.


Nota: Repare-se nas imagens abaixo. Tão interessante. Não creio que tenha sido a imagem de "Vertigo" uma inspiração para a imagem do filme de Vasconcelos, mas que é interessante a semelhança, é? Não que tenha algum mal fazer este exercício de intertextualidade, mas a coincidência é engraçada.





















A criatividade do argumento prende-se no facto de Vasconcelos explorar uma vertente pouco divulgada do amor. O realizador de "Call Girl" disse, em entrevista, que explora nos seus filmes várias facetas do amor e, de facto, em "Os Gatos não têm Vertigens", ele faz isso da forma mais inesperada possível.

o amor entre um adolescente (problemático) e uma mulher com alguma idade não é, a uma primeira vista, algo convencional, banal. Este amor não é um amor passional, carnal. É mais do tipo "mãe-filho" mas com uma pitada de camaradagem (ou melhor, é uma relação de camaradagem com um pouco de ternura própria da relação entre uma mãe e um filho). E mesmo assim, não se trata de um amor explorado grandemente pelos media.



Vasconcelos talvez tenha feito um dos filmes mais românticos, sem tratar do amor carnal, sexual.



Sonho desfeito

A primeira cena do filme é das melhores, prendendo o espectador ao ecrã. Quando Maria do Céu Guerra pára de dançar e vai beber água, o espectador sente que alguma coisa sinistra ou triste está para acontecer. 

O contraste entre a cara de cansaço e desespero de Guerra, ainda que subtil e o ambiente de ócio e despreocupação sofisticada que a rodeia causam uma estranheza inquietante. Guerra percorre o salão glamoroso, ofegante e cansada até junto de um balcão para refrescar a garganta. A mulher parece que vai sofrer um ataque, mas, na verdade, quem não aguentou o fôlego do baile foi a personagem de Nicolau Breyner que morre enquanto Guerra recupera energias. Uma surpresa para o espectador! O copo de água é um presságio do mal que se avizinha. É como se Guerra bebesse água para suportar melhor a morte que está à espreita no salão de baile.



Elsa Valentim, que dança com Breyner enquanto Guerra vai descansar, está vestida de lilás. Ora, o lilás é um roxo desmaiado ("desmaiado" vem mesmo a calhar) e, convencionalmente, o roxo está associado a sentimentos negativos (paixão de Cristo, tristeza). Elsa é o anjo da morte!




Repare-se que Guerra está vestida com uma echarpe ou xaile cor-de-rosa. Esta cor pode consistir numa brincadeira pelo nome da personagem de Guerra ser Rosa. Todavia, algo mais profundo pode advir da cor da echarpe. O cor-de-rosa é um vermelho esbatido, o que pode significar paixão tremida. Não que o amor, que é vermelho, entre Breyner e Guerra esteja enfraquecido mas, sim, que está para ser corrompido pela morte.





Vale referir que, na primeira cena, o uso de plano sequência confere à cena um cariz angustiante, ajudando a tornar perceptível ao espectador que aquela festa será interrompida por uma força obscura como acontece no conto de A Bela Adormecida.



Renascer das Cinzas

A porta da capela mortuária é verde, cor da esperança. Quem sabe, alguém não irá entrar na vida de Rosa para a alegrar? Ela bem precisa...



Os diálogos que Guerra e Breyner têm, depois da personagem deste ter morrido, são deliciosos e conseguem unir dois ingredientes à partida incompatíveis: melancolia e comédia. Faz lembrar o filme brasileiro "Dona Flor e os seus dois Maridos".



O comum seria Vasconcelos colocar um senhor charmoso e simpático na vida de Rosa para quebrar a solidão em que esta se encontra perante o seu estado de viúva. Ora, Vasconcelos foge à regra e inclui na vida da mulher um jovem, vagabundo com bom coração.


A cena em que os dois protagonistas, Maria do Céu Guerra e João Jesus, aparecem pela primeira vez juntos é engraçada visualmente. Um em cada mesa da esplanada, sem prestarem atenção um ao outro. Interessante como os dois não aparecem ao mesmo tempo. Surgem num mesmo plano, um plano sequência, mas não são apanhados em conjunto. Só depois da mala de Rosa ser roubada, os dois aparecem em conjunto num mesmo plano fixo, mas longe um do outro e ele de costas para ela.




Um Gato sem Vertigens

A vida de Jó, personagem de João Jesus, é triste e negra e as cores que o rodeiam reforçam visualmente essa ideia. Castanhos e cinzentos parecem ecoar no seu mundo felino, onde o rosa da sua camisola (talvez um sinal do seu amor não carnal por Rosa) é uma das poucas cores dotadas de um cariz alegre.



"De velho se volta a menino"


As cenas entre Guerra e Fernanda Serrano, que faz de sua filha, são tão reais que dói. Serrano é a típica filha preocupada com a saúde da mãe e que cuida dela, visto Guerra ser já idosa e, por isso, incapaz aos olhos da filha, seja do que for.

Serrano faz de boa filha mas é tão preocupada e austera que deixa a impressão de ser castradora, autoritária (e é, de facto, um pouco). As suas roupas sóbrias reforçam a sua personalidade.

A personagem de Serrano é uma figura maternal para com a sua mãe. Esta questão tem algo de divertido, mas é, acima de tudo, uma comédia muito amarga. É engraçado ver a filha preocupada com a mãe "rebelde", mas este tema é triste: a dependência dos idosos; o regressar à proteção. Rosa é Guerra e, de facto, Rosa é uma guerreira. Ela não irá para um lar.




Imitação de Vida

Vasconcelos parece brincar com muito gosto com os espelhos. Em duas cenas (na casa de banho e no quarto), é filmado o reflexo de Guerra e de Breyner, sendo que, ao contrário da atriz, a personagem masculina surge apenas no espelho. Talvez o espelho signifique "imitação de vida", uma irrealidade. A personagem de Breyner habita esse mundo porque já não é real, já não existe. Rosa tem de encarar a realidade de que o seu marido já não habita o mundo fora do espelho.



Vida

É preciso cuidarmos de alguém ou sentirmos-nos úteis para podermos dizer que vivemos. Caso contrário, apenas existimos (esta ideia e uma frase semelhante a esta estão presentes em "Madame X", um melodrama de 1966). Rosa, quando descobre o "gato" adolescente, sente-se útil e volta a ter vontade de viver (sai à rua e arranja coisas para fazer).



Nota: O filme é maravilhoso, mas há uma cena que me incomoda um bocadinho. O momento em que Rosa tem medo de ser apanhada por Jó e desmaia no seu apartamento é um pouco excessivo, quase caindo no campo da comédia por tão melodramático. Mas isto não atrapalha o filme, atenção. É uma parte mais franquinha, nada que deixe o espectador sem vontade de continuar a ver o filme.



O filho é um gato e o pai é um cão

As comparações que Vasconcelos faz entre as personagens e os animais é muito interessante. A vida de Jó é vivida num mundo cão, onde um gato tem poucas hipóteses de sobreviver. Vasconcelos não utiliza a expressão "cão" para caracterizar o pai de Jó como sinónimo de "melhor amigo". Neste filme, os gatos são melhores que os cães.








Jó é uma personagem real. É uma personagem tipo pois representa os chamados miúdos de rua. Mas não é excessivamente estereotipado. Vasconcelos mostra que Jó não tem culpa de ser assim e que, na verdade, o rapaz é mais um "coelho", assustado, perdido, manso se o deixarem ser.



Tejo

A cena em que Rosa atira as cinzas de Joaquim para o rio Tejo é muito divertida. Um realizador comum faria, muito provavelmente, uma cena dramática e emotiva. Vasconcelos faz uso da originalidade e torna-a uma comédia típica da Katherine Hepburn. No entanto, como este filme é essencialmente um drama, é preciso sensibilizar o espectador. Assim, surge a música melancólica acompanhando a imagem das cinzas perdidas nas águas do Tejo: o espectador, como que formatado, passa de divertido para triste.



Ciclo sem fim

No fim do filme, Guerra volta a vestir a roupa do início e parte para o outro mundo, onde encontra o seu amado marido. Um final reconfortante. Foi esposa, mãe, trabalhadora, de certa forma avó para com Jó e, agora, completa como se encontra, parte para outro baile, outra vida. Uma vida num salão de baile, não num lar. Jó vai seguir a sua vida, agora com uma namorada, longe do mundo cão, longe das vertigens. Já não corre perigo, já não tem de tê-las. Na verdade, ele é um gato. Ele nunca teve vertigens.


Em suma

"Os Gatos não têm Vertigens" é um grande filme. Um drama que não se torna demasiado pesado por ter momentos de humor inteligente. O guião é o trunfo do filme. Ainda assim, as interpretações de todos os atores e a fotografia estão excelentes. Lisboa está bela e charmosa. João Jesus mistura rebeldia e sensibilidade, tendo, provavelmente, o papel mais difícil do filme, e Maria do Céu Guerra está excelente mostrando a doçura, mas, por momentos, mostrando uma convincente faceta dura e destemida. Um filme português, bom e português, que faz refletir sobre o papel dos idosos e dos jovens "perdidos" que habitam Lisboa e todo o mundo. Um retrato verdadeiro misturado harmoniosamente com uma relação um pouco incomum (afinal, o cinema não pode mostra apenas a triste e dura Kansas, mas também o fantástico Oz). Sensível, divertido, dramático, envolvente, mas com um final feliz. Um doce para os cinéfilos e para o grande público. Recomendo.

Falas amadas

Posto aqui algumas das minhas falas preferidas presentes no filme:

“Eu pra ti sou como um emprego que tu detestas” 


“Agora eu já percebi porque é que ele ainda não conversou contigo... ele conversa melhor com o papel”




“Sabes o que é que tu és... és vintage”